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É o fim da due diligence imobiliária pela Lei 14.382/22?

28 de julho de 2023

Sabemos que a situação de calamidade pública ocasionada pela pandemia de Covid-19 provocou a necessidade de isolamento social à época, despertando um estado de emergência também na implementação de ferramentas tecnológicas capazes de gerar acesso às informações e manutenção de vida dos cidadãos durante o isolamento, razão pela qual o ano de 2022 foi marcado como o ano da tecnologia[1].

 

Com isso, o Brasil deu inúmeros passos às desburocratizações e facilidade no acesso às informações, o que também impactou positivamente na Lei de Registros Públicos, trazendo grandes avanços aos serviços registrais, além de assentar definitivamente o Sistema Eletrônico de Registros Públicos (SERP), que deverá ter seu Portal inaugurado em julho de 2023, conforme cronograma da Portaria 8 do CNJ.

 

Isso porque, a Lei nº 14.382/2022, resultante da MP 1.085/21, que modificou a redação dada à Lei 6.015/73, trouxe diversas inovações legislativas, sendo foi um dos maiores avanços normativos já vistos no setor, que teve por objetivo a além da desburocratização dos serviços registrais, a digitização dos processos, simplificação dos procedimentos, modernização e facilidade de acesso às informações e garantias, com consequente redução de custos.

 

Importante ressaltar que o SERP elencou não só os Cartórios de Registro de Imóveis, mas todas as atribuições da Lei Federal 6.015/73, quais sejam, os Cartórios de Títulos e Documentos, Civil de Pessoas Naturais e Civil de Pessoas Jurídicas, sendo regulado pela Corregedoria Nacional do CNJ. Com isso, o que antes era um sistema cartorial apenas local, agora se tornou um sistema cartorial de âmbito nacional.

 

Até pouco tempo, para aquisição de imóveis (de forma regular, com escritura e posterior registro), era necessário apresentar um dossiê de documentos relacionados às partes contratantes, com dezenas de certidões forenses da esfera cível, fazendária, fiscal, criminal, trabalhista e até familiar, fazendo com que fosse preciso, por consequência, um enorme dispêndio financeiro.

 

Com o advento da Lei nº 14.382/2022, em seu art. 16, que alterou a redação dada ao art. 54, §2°, inciso II da Lei 13.097/2022[2], restou facultativa a apresentação das certidões forenses e dos distribuidores para os efeitos da validade e eficácia do negócio jurídico, bem como dispôs que o exercício dessa faculdade também não atinge a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel. Para tanto, no Estado do Rio de Janeiro, optando-se pela apresentação ou dispensa, o fato será consignado na Escritura Pública pelo tabelião responsável[3].

 

A principal vantagem da dispensa das certidões é a agilidade e redução dos custos, visto que as partes negociantes, na maioria das vezes, não querem aguardar uma ampla due diligente, isto é, investigação e análise de riscos diante das certidões apresentadas, tampouco ampliar seus gastos, para, apenas posteriormente, se vincularem contratualmente, evitando assim eventual arrependimento de uma das partes. Ou seja, em primeiro momento, tal dispensa é vantajoso para ambas as partes na relação negocial.

 

Em contrapartida, a jurisprudência e as normativas vigentes não acompanharam tais mudanças, fazendo com que exista ainda uma lacuna a ser preenchida quanto à dispensa das certidões forenses (que reduziu a burocracia e custos) vs. a (in)segurança jurídica na venda e aquisição de imóveis no que concerne às fraudes às execuções e ao credor.

 

Eis que surge a problemática: a) de um lado, a Lei 14.382/2022 dispensa a apresentação de  certidões para validade, eficácia e caracterização ou não de boa-fé do terceiro adquirente; b) por outro lado, a Súmula 375 do STJ[4] atrela a fraude à execução ao registro do gravame e, na hipótese de não ter sido registrado, atribui ônus do adquirente em comprovar a adoção de cautelas necessárias; c) ainda de outro lado, mas não menos importante – muito pelo contrário, tem o disposto no art. 792 do CPC, o qual prevê que a fraude à execução não será caracterizada apenas com o registro de gravames, mas também se, quando ao tempo da transação, tramitar contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência, independente de registro, com ônus do credor de comprovar tal questão.

 

O ponto em comum de todas as normativas, que não deixam dúvidas, é caracterização da fraude à execução no caso de existir gravames sobre a matrícula dos imóveis transacionados. Contudo, o que se extrai nos itens b) e c) acima, é necessidade que se mantém da adoção de todas as cautelas necessárias, i.e., análise de certidão de distribuidores para que se verifique a existência de ações capazes de levar o alienante à insolvência. Ou seja, independentemente da possibilidade de dispensa de certidões, elas ainda são necessárias para segurança do negócio jurídico.

 

Dessa forma, a referida controvérsia deixa claro que a Lei 14.382/2022 deixou de acompanhar o Código de Processo Civil, já que conforme explicitado acima, ainda que não existam gravames sobre o imóvel, se ao tempo da transferência do bem tão somente existir ações que poderiam levar o vendedor à insolvência, esse fato, por si, já poderia configurar fraude à execução – claro, sem cercear o ônus das partes de comprovarem ao contrário.

 

Mesmo após a publicação da Lei 14.382/2022, publicada em 28/06/2022, o Superior Tribunal de Justiça sedimentou o mesmo entendimento[5] do previsto no Código de Processo Civil, sob o argumento de que o acesso à informação atualmente é mais tátil, e que isso vem da ideia de que o cidadão, como homem médio e capaz de realizar transações imobiliárias, também possui capacidade de ser diligente quando do fechamento do negócio, estando à sua disposição inúmeros mecanismos de consultas online da existência ou não de ações judiciais, gravames sobre o imóvel e outros fatores que podem trazer risco ao negócio jurídico realizado se não observado.[6]

 

Ao que parece, os casos envolvendo a temática da fraude à execução ainda sofrerão alto grau de discricionaridade, pois, a mudança legislativa quanto às certidões forenses poderá induzir incautos a erro, já que não reforçou os critérios constantes no art. 792, I e IV do Código de Processo Civil, que apresenta critérios mais solenes e claros, como o fato de registro de gravame não ser o único requisito capaz de configurar fraude.

 

Diante desse cenário, parece cristalino o dever de cautela a ser adotado pelo terceiro adquirente nas transações imobiliárias, devendo ele requerer certidões necessárias que garantam a segurança do ato e fazendo uma minuciosa análise dos riscos da transação, não devendo se limitar ao previsto na Lei 14.382/2022, já que há outras normas que devem ser observadas para proteger as partes envolvidas.

 

Vale consignar também que o risco não se limita ao adquirente, mas também ao vendedor, já que ao averiguar a situação jurídica e financeira ao adquirente, ele também poderia premeditar também outros riscos como, por exemplo, o de eventual inadimplência do adquirente.

 

Por fim, importante frisar a imprescritibilidade da due diligence, já que existem inúmeras outras situações que poderão correr com a ausência da análise de risco quando da realização do negócio, como a fraude contra credores, perda do imóvel por evicção, possibilidade de responder por dívidas que incidem sobre o imóvel (obrigações propter rem) e outros, razão pela qual faz-se necessária essa verificação minuciosa por um advogado especialista, capaz de alertar os riscos às partes negociantes ou buscar solução para outros problemas.

 

 

HAROLDO LOURENÇO

Sócio Fundador do BLP Advogados.

Pós-doutor (UERJ). Doutor e mestre em Direito Processual. Professor Adjunto (UFRJ).

Coordenador de Mentorias na ABAMI (Associação Brasileira de Advogados do Mercado Imobiliário). Membro da ABA (Associação Brasileira de Advogados), do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

 

NATHALIA COSTA

Advogada Associada no BLP Advogados

Pós-graduada em Direito Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito.

Curso de Extensão de Prática na Advocacia Imobiliária.

Experiência em procedimentos extrajudiciais imobiliários, como Regularização de Imóveis, Direito Notarial e Registral e Contratos.

[1] https://www.conjur.com.br/2023-mar-04/opiniao-crescimento-mercado-tecnologia-juridica

[2] Art. 16. O art. 54 da Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015, passa a vigorar com as seguintes alterações, numerado o parágrafo único como §1º:

(…)

  • 2º Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput deste artigo ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas:

I – a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985; e

II – a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais.”

[3] Art. 356, §1º do Provimento CGJ nº 87/2022: § 1º. Sempre que o alienante ou o adquirente optarem pela apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais cíveis e criminais ou quaisquer outros documentos que entendam relevantes para a segurança do negócio jurídico, o tabelião consignará o fato na escritura e mencionará eventual existência de apontamentos neles consignados. No caso específico das certidões indicadas neste parágrafo, se a opção for pela dispensa, o fato será igualmente consignado no instrumento.

[4] “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.”

[5] REsp n. 1.981.646/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 2/8/2022, DJe de 5/8/2022.

[6] Veja-se, a título exemplificativo: https://e-cartoriodobrasil.com/, https://registradores.onr.org.br/ e https://censec.org.br/