Em meio à dinamicidade da evolução das relações obrigacionais frente à aplicação de produtos e programas tecnológicos, o mercado imobiliário se adapta ao blockchain e tokenização [1] de ativos imobiliários.
Em apertada síntese, alguns conceitos precisam ser mais bem esclarecidos para compreendermos melhor esta operação.
A blockchain [2] (cadeia de blocos) é um serviço de registro distribuído no formato peer-to-peer (“P2P”), ou seja, de pessoa para pessoa, sendo seguro e usado para gravar transações monetárias em sua rede descentralizada de computadores, criando um grande banco de dados avançado que permite o compartilhamento transparente de informações entre os usuários, armazenando dados em blocos interligados em uma cadeia, monitorando pedidos, pagamentos, contas entre outras transações, não sendo possível excluir ou modificar a cadeia sem o consenso da cadeia.
Por representar registro de operações executadas que se valem de uma base de dados descentralizada [3], a blockchain é comparada pela doutrina como o clássico (e obsoleto) livro contábil, bem como é possível sua comparação com o cartório de registro imobiliário (RGI), no qual são encontradas as informações sobre um imóvel, sempre de maneira continuada para refletir uma narrativa sequencial e cronológica dos atos, concentrando todos os atos imobiliários na matrícula (artigo 54 Lei n° 13.097/15).
A descentralização da blockchain se caracteriza pela ausência de intervenção de terceiros ou intermediários, públicos ou privados, eis que o sistema funciona mediante esforço computacional de usuários conectados à rede e não em um único agente, como ocorre, por exemplo, na operação via cartão de crédito, que está concentrada em uma instituição financeira ou com a transferência da propriedade, que no Brasil é concentrada nos cartórios do RGI (artigo 1245, CC/02).
Já o token é um ativo registrado na blockchain dividido e subdividido em inúmeros pedaços, os quais podem ser negociados e armazenados em tecnologia de contabilidade descentralizada. A “tokenização” é a transformação de um ativo real em um ativo digital, fragmentando em unidades criptografadas, criando o chamado token.
Há algumas espécies de tokens, como o fungível e o não fungível (non fungible token), popularmente denominado de “NFT”. Os primeiros podem ser substituídos por outros de mesma espécie, qualidade e quantidade, como regulamentado pelo artigo 85, CC/02. Os segundos, os NFT’s, representam um token não fungível, criptografado, vinculado a um ativo tangível ou intangível, que pode existir no mundo real ou somente no virtual.
Imaginemos uma figura qualquer seja uma obra de arte que, por si só, não possui nada estruturalmente diferente de qualquer outra existente na internet.
Agora, sendo ela transformada em um NFT, ou seja, ligada a tecnologia de blockchain e criptografada, de modo que a partir desse momento apenas uma única versão desta imagem pode ser original, pois somente ela foi “tokenizada”, todas as demais tornam-se cópias ou falsificações. Perceba-se que o NFT se torna um ativo único, gerando escassez e valorização [4].
Ao falar-se em “tokenização” de ativos imobiliários, de forma básica e prática, explicita-se a transformação de qualquer ativo em um NFT, o que pode ocorrer com um apartamento ou uma casa, uma vez que a blockchain se expandiu para o setor de imóveis, ultrapassando os limites do setor financeiro e concretizando-se através da operação de ativos, trazendo uma nova vertente para o mercado Real Estate [5], referindo-se a todo ativo real, normalmente relacionado a um imóvel ou ativo imobiliário.
O mercado imobiliário chega para o mundo digital através dos Security Tokens, os quais representam a posse de qualquer ativo real na blockchain, que podem ser negociáveis como obrigações, débitos, ações, garantias etc., ou seja, é possível se ter algo ou parte dele sem a necessidade de possuí-lo, como possuir quantidade de um imóvel sem a necessidade de adquiri-lo fisicamente.
Esta operação (“tokenização”) permite a representação de direitos sobre um ativo imobiliário, que poderá ser objeto de vários fracionamentos com a finalidade de captar recursos de forma desburocratizada e com custos reduzidos.
Assim, o possuidor de um apartamento o divide em ativos digitais, podendo negociar esses de acordo com os anseios dos investidores interessados, os quais realizarão a compra através de marketplaces [6], podendo receber periodicamente os proveitos da exploração do imóvel, algo muito semelhante como o que já ocorre com os tradicionais Fundos de Investimento Imobiliários (FIIs).
Pelos FIIs uma instituição financeira específica constitui o fundo e realiza o processo de captação de recursos junto aos investidores através da venda de cotas, gerando uma comunhão de recursos destinados à aplicação em ativos relacionados ao mercado imobiliário, como aquisição de um imóvel construído ou em construção, com finalidade residencial ou comercial, obtendo renda que serão distribuídos periodicamente aos seus cotistas.
Todas as operações em torno dos Security Tokens são asseguradas pela utilização de smart contracts, contratos inteligentes que são gerados automaticamente após a conclusão de cada negócio, executando cláusulas e condições entre as partes de forma automática, sem a necessidade de um intermediário.
As cláusulas contratuais perdem espaço para a linguagem da computação, onde a negociação é programada em um código autoexecutável, que roda em uma blockchain, transmitindo para as partes toda as obrigações e penalidades inseridas, distribuindo e liquidando os regramentos transacionados.
Desta forma, por exemplo, se houver atraso na entrega do objeto do contrato, o banco de dados computacional irá identificar que não houve o cumprimento por uma das partes da obrigação contratual e, automaticamente, será debitado o crédito e transferido para a parte credora, não sendo necessário invocar uma proteção jurisdicional, tornando o cumprimento do contrato mais seguro, eficaz e ágil.
O principal benefício da “tokenização” de ativos imobiliários é a desburocratização do processo de negociação e transação imobiliária que, nesse modelo, acontece de forma líquida e praticamente instantânea.
Ademais, a exclusão da necessidade de um intermediário devido à automatização da execução do contrato, dinamiza a formalização dos negócios jurídicos feitos em torno de imóveis, proporcionando uma celeridade aos acordos, causando, consequentemente, um aquecimento do mercado imobiliário.
Necessário explicitar que a comercialização de tokens imobiliários ainda não possui aval legal pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), quiçá regramento legislativo específico que trate sobre a regulamentação da “tokenização” de ativos imobiliários. Contudo, tal vácuo regulamentar não impede e não invalida seu uso.
O único regramento que existe sobre o tema, salvo melhor juízo, foi feito pela Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) pelo Provimento 38/2021, que traz medidas específicas sobre lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis por tokens e seu registro imobiliário restrito ao referido estado.
Estes títulos específicos poderão, portanto, serem registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, os quais passarão pela qualificação registral do oficial do registro, devendo o ato notarial e registral ser comunicado ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), como exigido pelo Provimento 88/2019 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
A preocupação dos operadores deste mercado em constante ascensão é que as premissas regulatórias não engessem a operacionalização da “tokenização” imobiliária, trazendo regras do direito público e administrativo que congelem rapidez e disrupção deste novo modo de enxergar o Real Estate.
Desta forma, ressalta-se que a questão aqui trazida deve ser analisada não só de uma forma jurídica regulatória, mas, também, política e social, uma vez que a modernização trazida pela “tokenização” dos ativos imobiliários ao mercado de imóveis possibilitou dinamicidade nas operações, proporcionando maior circulação de investidores, negócios e ativos.
Assim, deve-se aliar a preservação das estruturas céleres e acessíveis desse mercado às regras basilares do direito imobiliário do nosso ordenamento jurídico, visando negociações válidas, legais, longínquas de nulidade e embebidas de segurança jurídica.
Haroldo Lourenço e Carolina Abdalla
[1] Registro digital feito em uma rede blockchain, uma espécie de banco de dados criptografado, descentralizado e distribuído.
[2] Criado em 1991 por Stuart Haber e W. Scott Stornetta, que trabalhavam na Xerox. A fim de evitar fraudes em artigos científicos, o projeto deles envolvia criar blocos de informações atrelados uns aos outros que não pudessem ser alterados sem ser percebidos por todos.
[3] ANDROUTSELLIS-THEOTOKIS, Stephanos & SPINELLIS, Diomidis. A Survey of Peer-to-Peer Content Distribution Technologies. Athens University of Economics and Business. p. 337. Disponível em <https://www.spinellis.gr/pubs/jrnl/2004-ACMCS-p2p/html/AS04.pdf>.
[4] Exemplo extraído de https://urbe.me/lab/tokenizacao-de-imoveis-como-funciona/, acessado em 16.10.2022.
[5] Termo em inglês que se refere a todo ativo real, normalmente relacionado a um imóvel ou ativo imobiliário.
[6] Espaço de compra e venda de produtos.