Na peça de William Shakespeare, o Mercador de Veneza retrata a história de Antonio, um rico comerciante de Veneza, que não exerceu seu dever de diligência ao pedir dinheiro emprestado ao judeu Shylock para ajudar seu amigo Bassanio a conquistar o amor de Portia. Como garantia do empréstimo, exige-se uma libra da carne de Antonio caso ele não pague a dívida no prazo acordado. Quando Antonio não consegue pagar a dívida, o credor tenta cobrar a promessa e o caso vai parar diante do tribunal, onde o embate é protagonizado pelos advogados.
Tal como naquela comédia trágica, o Caso Americanas trouxe ao mundo jurídico – e por que não dizer mercado de capitais? – a necessidade de achar culpados por trás dos números. A despeito das discussões sobre a possibilidade de responsabilizar os acionistas controladores da companhia (art. 115 e art. 117, LSA), em benefício do tempo dos leitores, faremos nosso recorte sob a ótica dos administradores e seus deveres fiduciários (art. 159, LSA).
Em linhas gerais, nota-se que, num senso empresarial comum, é diligente o administrador que investiga e fiscaliza todas as situações negociais da companhia, agindo de forma cuidadosa e conscienciosa em suas decisões. Todavia, para realizar um ato de cunho decisório de forma efetiva, o administrador busca know how de técnicos nos assuntos ligados não só ao core business[1], como, também, aos novos projetos ligados à companhia, para que possa exercer seu duty of care[2] pautado da mais excelente expertise.
A questão a ser colocada em pauta é: a partir das ações do administrador como gestor, até onde se estende no cenário jurídico brasileiro a business jugdment rule[3] (teoria da decisão empresarial fundamentada)? Visto o escasso rol de decisões dos tribunais sobre o tema, nos recorremos ao direito comparado estadunidense e às autarquias brasileiras com a finalidade de positivar os três deveres fiduciários do administrador: o dever de cuidado, a boa-fé e o dever de lealdade[4], os quais estão presentes no artigo 1.011 do Código Civil e artigo 153 da Lei nº 6.404/76[5].
Ao examinar as decisões proferidas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia brasileira que melhor trabalha o tema em questão, identifica-se que essa adota um padrão de revisão no qual os administradores são considerados responsáveis se houver uma falha completa ou sistemática nos controles internos durante sua supervisão. De certa medida, é o reconhecimento de que a análise ex post deve ser criteriosa, se distanciando da tendência de olhar para trás e pensar que deveríamos ter previsto algo que parece óbvio (indsight bias[6]).
Tal forma de análise traz um olhar mais justo e cuidadoso sobre as investigações empresariais, uma vez que, num primeiro momento, se afasta a presunção culposa do administrador, partindo do princípio que este não só agiu de forma meticulosa e diligente, como tomou suas decisões baseadas em fatos e pareceres eivados de expertise de diversas áreas. Assim, analisa-se toda a gestão do administrador no tempo, dirimindo e acautelando todos os processos e procedimentos realizados.
Resta, assim, a crítica à necessidade de limitar o dever de responsabilização dos administradores pelas decisões somente embasadas em documentos técnicos, singulares ou não, que perfazem o aperfeiçoamento das relações econômicas contemporâneas e o contencioso societário que se desdobra. Embora a business judgment rule ofereça um certo grau de proteção aos administradores, a técnica acaba por perder força frente à busca desenfreada pelo ouro. Afinal, farinha pouca, meu pirão primeiro!
Em um cenário que a assimetria de informações é causa e consequência, o respeito às decisões tomadas de boa-fé pelos administradores, se mostra um esforço necessário para evitar o equívoco de julgar o cumprimento de deveres fiduciários pelo retrovisor do tempo, na posição privilegiada de quem já sabe o resultado trágico das decisões tomadas pelos administradores.
Isso porque por mais que o administrador exerça suas funções atinente ao seu dever de fidúcia perante à companhia ao tomar decisões, o mesmo está constantemente sobre o risco de negociações e operações societárias e administrativas, devido à dinamicidade e imprevisibilidade da mutabilidade que as leis, normas reguladores e mercado financeiro sofrem, fazendo com que decisões que se travestiam como boas “num tempo presente”, possam ser tidas como malsucedidas “num futuro” próximo ou distante.
Equivocado seria apontar dedos acusatórios somente ao administrador, dado que as companhias possuem mecanismos de supervisão e auxílio nas tomadas de decisões daquele, como o accountability[7], fazendo com que outros integrantes da companhia, sócios ou não, participem de tomada de decisões administrativas ou negociais.
Tais delimitadores trazidos no parágrafo acima, se traduzem no dever de compliance que o administrador possui ao tomar medidas, visto que em vários casos decisórios, esse precisa, obrigatoriamente, da permissão do conselho administrativo e/ou aprovação em assembleia, por exemplo, fazendo com que diversos membros societários e administrativos da pessoa jurídica conheçam diversos fatos que permeiam suas decisões. Aqui, cai por terra o mito de que o administrador é capaz de tomar todas as decisões de forma singular, deixando os demais integrantes da empresa no limbo informativo.[8]
Atualmente, o Caso Americanas[9] circunda todo o desdobramento da questão aqui tratada, visto que foi colocada uma lupa frente à forma de condução dos balanços empresariais pelo conselho administrativo, dando a entender que suas supostas omissões são responsáveis por todo o pesadelo vivenciado pela companhia até o momento, driblando o compliance e medidas de contenção de danos implementadas pela pessoa jurídica.
Apesar de sabido que o conselho administrativo não poderia tomar todas as decisões financeiras e fiscais da Americanas de forma singular, aparentemente, este foi colocado no front[10], suportando todas as feridas e baixas da situação, deixando de lado outros personagens que deixaram de seguir as diretrizes de compliance e segurança da empresa.
Conclui-se, portanto, que se um administrador tomar uma decisão sem observar o dever de cuidado, a boa-fé e o dever de lealdade, sem considerar todas as informações relevantes ou sem embasar-se em documentos técnicos, embebidos de expertise, que suportem sua decisão, ele pode – e deve – ser responsabilizado por quaisquer danos causados à empresa e seus stakeholders[11]. O caça às bruxas no Caso Americanas para congelar bens e produzir provas, no entanto, não nos parece ser a resposta.
Tal como na história de Shakespeare, a corrida pela carne dos culpados deve continuar, só que dificilmente, será sem derramamento de sangue.
GABRIEL BORSOTTO
Sócio Fundador do BLP Advogados. Mais de 10 anos de experiência na estruturação de novos negócios e consultoria empresarial, tendo representado o interesse de diversas empresas nacionais e internacionais na realização de operações societárias e de investimento. Liderança de equipe na atuação de litígios empresariais de alta complexidade, com foco na área na área societária, contratual, shipping e logística.
LLM em Litigation (Litígios) pela Fundação Getúlio Vargas – FGV Direito Rio.Larga experiência atuação na defesa de interesse de diversas empresas em processos de recuperação judicial e falências;
Administrador Judicial – TJ/RJ. Diretor Jurídico da Sociedade Brasileira de Marinha Mercante – SOBRAMAM. Autor de livro e artigos jurídicos.
CAROLINA ABDALLA
Advogada Associada no BLP Advogados. Pós-graduada em Direito Societário pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Especializada em Contratos, Gestão e Aquisições pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, com experiência profissional adquirida em escritórios de advocacia de grande renove, tendo atuado em diversas operações de M&A.
AUGUSTO DÓREA
Advogado Associado no BLP Advogados. LLM em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/RJ. Experiência em litígios de alta complexidade, tendo composto diversas bancas renomadas de advocacia em sua carreira.
[1]Negócio principal, atividade empresarial principal de uma companhia;
[2]Dever de cuidado. Obrigação legal imposta a um indivíduo, exigindo a adesão a um padrão de cuidado com a finalidade de evitar descuidos, atos negligentes;
[3]Regra de exclusão da responsabilidade civil dos administradores das sociedades. artigo 159, §6º, da lei 6.404/76;
[4] PONTA, Adina. The Business Judgment Rule – Approach and Application. Juridical Tribune, Bucharest Academy of Economic Studies, Law Departament, Vol. 5, pag. 22-44, December, 2015.
[5]https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm e https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm
[6] viés de retrospectiva é a comum tendência de as pessoas perceberem eventos passados como tendo sido mais previsíveis do que realmente foram.
[7] Mecanismos de controle de erros;
[8] O artigo 122 da Lei 6.404/76 traz hipóteses nas quais, obrigatoriamente, os assuntos necessitam de deliberação em assembleia, conforme https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404consol.htm
[9] BRANDÃO, Raquel. Caso Americanas: Temos a maior fraude da história corporativa do Brasil, diz Verde. Revista Exame. Disponível em <https://exame.com/invest/mercados/caso-americanas-temos-a-maior-fraude-da-historica-corporativa-do-brasil-diz-verde/>. Acesso em 18 de abril de 2023.
[10] Front de guerra, linha de frente na guerra;
[11] Pessoas, empresas ou instituições que têm algum tipo de interesse na gestão e nos resultados de um projeto ou organização.